A voz era apaixonada, vibrante.
Transbordava do coração, atravessava as cordas vocais, ganhava emoção ao ritmo das mãos, os olhos vivazes acompanhavam o tom. Histórias, poemas, contos, causos, opiniões fluíam ao ritmo entoado por Cora, mestre na arte de declamar e interpretar, capaz de confundir desavisados sobre o que era realidade, o que era fantasia.
Cora, Aninha, Anica, Anita era todas numa só, pequenina, franzina, eternamente atarefada, permanentemente escritora. Erram os que tentam reduzi-la à condição de poeta, ou poetisa. Era contista, cronista de tempos passados e presentes. Jornalista também, observadora distante e crítica, fiel redatora de fatos e acontecidos.
Escrevia com afã, no impulso, sobre qualquer papel que lhe caísse às mãos. Escrevia em bordas de jornais, em meio a cartões postais, em envelopes de cartas, em rústicos papéis de embrulhar pão. Se a inspiração transbordasse, desprezava os limites, ia desenhando letras pelos cantos, nas entrelinhas, subia e descia até que se extingüisse o desejo de expressão. Se tivesse tempo, passava a limpo, em cadernos caprichados ou em blocos de carta. Caso contrário, ficavam por ali, esquecidos em meio a livros, recortes, folhetos. Perdidos nos guardados.
Ana Lins dos Guimarães Peixoto nasceu e cresceu na casa velha da ponte, construção maciça, erguida por escravos, nos idos de 1770 para abrigar o capitão-mor de Villa Boa de Goyaz, Antonio Souza Telles de Menezes. Conta-se que o capitão foi um inconfidente, desgarrado da turma de Minas e perdido no interior de Goiás. Morreu, ou foi mandado morrer, em 1804. Entre os bens seqüestrados pela Coroa portuguesa, estava a casa, comprada em leilão pelo cônego Couto Guimarães. Meio século depois, em 1889, ali Ana foi gerada.
Virou Cora aos 15 anos, o pseudônimo uma exigência para disfarçar a escritora, que moça prendada e casadoira não perdia tempo com manuscritos. Cora, derivativo de coração, identidade que a diferenciava de tantas Anas da cidade, batizadas todas em homenagem à santa padroeira. Coralina ainda demorou algum tempo, surgiu depois, soma perfeita de sonoridade e tradução literária. Cora Coralina, coração vermelho, gostava de contar. "Lindo, não é?"
Vó Cora falava pouco de si, muito contavam dela os quatro filhos, um homem, três mulheres. Conheceu Cantídio Tolentino de Figueiredo Brêtas, recém-nomeado chefe de Polícia de Villa Boa, durante uma tertúlia literária. Tinha 20 anos, já era uma "solteirona". Entre poemas, récitas e acirrados debates culturais se apaixonaram. Fugiu com ele para Jaboticabal, interior de São Paulo. Cantídio era homem separado, tinha filhos na capital paulista. E uma outra filha, fruto de romance com uma índia, durante passagem pelo Norte de Goiás. Essa, Cora criou.
Saraus literários ou não, Cantídio nada gostava do pendor da mulher. A Cora ousada, que deixou para trás preconceitos sociais, pouco ligava. Publicava artigos nos jornais de Jaboticabal, construía poesias e costurava contos, depois, ao mudar para São Paulo. Flagrada na cidade pela Revolução Constitucionalista de 1932, alistou-se como enfermeira - a filha mais nova, Vicência, encontrou a ficha de inscrição recentemente, perdida entre centenas de textos inéditos. Costurava bibis (bonés) para soldados, uniformes, aventais para enfermeiras. Depois, os revoltosos derrotados pelas Forças de Getúlio Vargas, encontrou outra causa. Bradou pela formação de uma partido feminino, escreveu até o manifesto da agremiação.
Enviuvou, vendeu livros editados pela José Olympio de porta em porta. Aventurou-se por Penápolis, no interior paulista, montou uma pensão, depois um pequeno comércio, a Casa de Retalhos. Desembarcou em Andradina no início da década de 50, a cidade se erguia. Abriu a Casa da Borboleta, vendia um pouco de tudo para mulheres. Montou sítio na vizinha Alfredo de Castilho. Subiu em palanques para apregoar o voto na UDN. Em 1956, filhos criados, netos embalados, voltou à "origem ancestral".
Tinha motivo - lutar pela posse da velha casa da ponte antes que, por usucapião, se transferisse para um sobrinho. Instalou-se com "seu" Vicente, um nordestino faz-tudo e analfabeto que a acompanhava desde o sítio em Castilho. "Seu" vicente, figura doce, simplório, dedicado, embebedava-se até com guaraná.
Entre móveis antigos e sob o calor do velho fogão de lenha, Cora escreveu, escreveu, escreveu. Aprendeu a datilograr aos 70 anos, publicou o primeiro livro - Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais - aos 75. Meu pai, Rúbio, minha mãe, Vicência, meus três irmãos e eu passamos uma temporada com Cora nesse tempo. Meu pai datilografa os manuscritos numa antiga Olivetti. Ela, ao lado, ainda remendava os textos, processo contínuo de criação.
Sou neta de Cora, herdeira de seu nome de batismo, orgulhosa dessa descendência. Cresci escavando o porão da casa velha da ponte atrás do ouro do capitão-mor - que ela contava ter sido escondido por um escravo de confiança do inconfidente. Cheguei à adolescência ouvindo-a declamar, com cativante êxtase, poemas recém-terminados. Acreditei em histórias inventadas. Empanturrei-me de seus doces, apurados dias e dias em tachos de cobre, caprichosamente arrumados em caixas de papelão, dinheiro da venda depositado na poupança. Economias que permitiram a compra, em leilão, da velha casa.
A cada dia, hoje adulta, ela de volta à terra, eternamente ligada à cidade que tanto amou, descubro um pouco mais sobre Cora. Há tanto material ainda inédito além dos apresentados nessa edição de Idéias. Há tanta vida ainda a publicar. Até livro de receitas, selecionadas ao longo da existência - maneira antiga de cozinhar, que exige tempo e capricho - espera hora e interesse para chegar ao prelo. Cora deixou um mundo a desvendar. Sua herança, minha herança.
Texto de Ana Maria Tahan - editora de Brasil do JB e neta de Cora Coralina .
Transbordava do coração, atravessava as cordas vocais, ganhava emoção ao ritmo das mãos, os olhos vivazes acompanhavam o tom. Histórias, poemas, contos, causos, opiniões fluíam ao ritmo entoado por Cora, mestre na arte de declamar e interpretar, capaz de confundir desavisados sobre o que era realidade, o que era fantasia.
Cora, Aninha, Anica, Anita era todas numa só, pequenina, franzina, eternamente atarefada, permanentemente escritora. Erram os que tentam reduzi-la à condição de poeta, ou poetisa. Era contista, cronista de tempos passados e presentes. Jornalista também, observadora distante e crítica, fiel redatora de fatos e acontecidos.
Escrevia com afã, no impulso, sobre qualquer papel que lhe caísse às mãos. Escrevia em bordas de jornais, em meio a cartões postais, em envelopes de cartas, em rústicos papéis de embrulhar pão. Se a inspiração transbordasse, desprezava os limites, ia desenhando letras pelos cantos, nas entrelinhas, subia e descia até que se extingüisse o desejo de expressão. Se tivesse tempo, passava a limpo, em cadernos caprichados ou em blocos de carta. Caso contrário, ficavam por ali, esquecidos em meio a livros, recortes, folhetos. Perdidos nos guardados.
Ana Lins dos Guimarães Peixoto nasceu e cresceu na casa velha da ponte, construção maciça, erguida por escravos, nos idos de 1770 para abrigar o capitão-mor de Villa Boa de Goyaz, Antonio Souza Telles de Menezes. Conta-se que o capitão foi um inconfidente, desgarrado da turma de Minas e perdido no interior de Goiás. Morreu, ou foi mandado morrer, em 1804. Entre os bens seqüestrados pela Coroa portuguesa, estava a casa, comprada em leilão pelo cônego Couto Guimarães. Meio século depois, em 1889, ali Ana foi gerada.
Virou Cora aos 15 anos, o pseudônimo uma exigência para disfarçar a escritora, que moça prendada e casadoira não perdia tempo com manuscritos. Cora, derivativo de coração, identidade que a diferenciava de tantas Anas da cidade, batizadas todas em homenagem à santa padroeira. Coralina ainda demorou algum tempo, surgiu depois, soma perfeita de sonoridade e tradução literária. Cora Coralina, coração vermelho, gostava de contar. "Lindo, não é?"
Vó Cora falava pouco de si, muito contavam dela os quatro filhos, um homem, três mulheres. Conheceu Cantídio Tolentino de Figueiredo Brêtas, recém-nomeado chefe de Polícia de Villa Boa, durante uma tertúlia literária. Tinha 20 anos, já era uma "solteirona". Entre poemas, récitas e acirrados debates culturais se apaixonaram. Fugiu com ele para Jaboticabal, interior de São Paulo. Cantídio era homem separado, tinha filhos na capital paulista. E uma outra filha, fruto de romance com uma índia, durante passagem pelo Norte de Goiás. Essa, Cora criou.
Saraus literários ou não, Cantídio nada gostava do pendor da mulher. A Cora ousada, que deixou para trás preconceitos sociais, pouco ligava. Publicava artigos nos jornais de Jaboticabal, construía poesias e costurava contos, depois, ao mudar para São Paulo. Flagrada na cidade pela Revolução Constitucionalista de 1932, alistou-se como enfermeira - a filha mais nova, Vicência, encontrou a ficha de inscrição recentemente, perdida entre centenas de textos inéditos. Costurava bibis (bonés) para soldados, uniformes, aventais para enfermeiras. Depois, os revoltosos derrotados pelas Forças de Getúlio Vargas, encontrou outra causa. Bradou pela formação de uma partido feminino, escreveu até o manifesto da agremiação.
Enviuvou, vendeu livros editados pela José Olympio de porta em porta. Aventurou-se por Penápolis, no interior paulista, montou uma pensão, depois um pequeno comércio, a Casa de Retalhos. Desembarcou em Andradina no início da década de 50, a cidade se erguia. Abriu a Casa da Borboleta, vendia um pouco de tudo para mulheres. Montou sítio na vizinha Alfredo de Castilho. Subiu em palanques para apregoar o voto na UDN. Em 1956, filhos criados, netos embalados, voltou à "origem ancestral".
Tinha motivo - lutar pela posse da velha casa da ponte antes que, por usucapião, se transferisse para um sobrinho. Instalou-se com "seu" Vicente, um nordestino faz-tudo e analfabeto que a acompanhava desde o sítio em Castilho. "Seu" vicente, figura doce, simplório, dedicado, embebedava-se até com guaraná.
Entre móveis antigos e sob o calor do velho fogão de lenha, Cora escreveu, escreveu, escreveu. Aprendeu a datilograr aos 70 anos, publicou o primeiro livro - Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais - aos 75. Meu pai, Rúbio, minha mãe, Vicência, meus três irmãos e eu passamos uma temporada com Cora nesse tempo. Meu pai datilografa os manuscritos numa antiga Olivetti. Ela, ao lado, ainda remendava os textos, processo contínuo de criação.
Sou neta de Cora, herdeira de seu nome de batismo, orgulhosa dessa descendência. Cresci escavando o porão da casa velha da ponte atrás do ouro do capitão-mor - que ela contava ter sido escondido por um escravo de confiança do inconfidente. Cheguei à adolescência ouvindo-a declamar, com cativante êxtase, poemas recém-terminados. Acreditei em histórias inventadas. Empanturrei-me de seus doces, apurados dias e dias em tachos de cobre, caprichosamente arrumados em caixas de papelão, dinheiro da venda depositado na poupança. Economias que permitiram a compra, em leilão, da velha casa.
A cada dia, hoje adulta, ela de volta à terra, eternamente ligada à cidade que tanto amou, descubro um pouco mais sobre Cora. Há tanto material ainda inédito além dos apresentados nessa edição de Idéias. Há tanta vida ainda a publicar. Até livro de receitas, selecionadas ao longo da existência - maneira antiga de cozinhar, que exige tempo e capricho - espera hora e interesse para chegar ao prelo. Cora deixou um mundo a desvendar. Sua herança, minha herança.
Texto de Ana Maria Tahan - editora de Brasil do JB e neta de Cora Coralina .
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