O telefone tocou exatamente às 23h30min da terça-feira, 8 de maio. Era uma amiga que gosto demais, daquelas que estão sempre por perto em todas as horas, retornando minha ligação, ao chegar do colégio onde leciona à noite. Quando me acomodei com as pernas esticadas sobre a cama para conversar com ela no maior conforto, imaginei que não seria um papo curto. Falamos em outras amigas, de um encontro talvez no sábado para quem não viajar, da insegurança na cidade (sua mãe passou pela experiência do falso seqüestro à tarde), de sentimentos, como saudades, e das responsabilidades que temos quando cativamos.
Pois, uma hora depois, ao colocar o fone no lugar, em cima da minha bancada de computador, notei que somente a minha respiração era ouvida pelo apartamento. Luzes deixavam escapar alguma vida de duas peças, mas o silêncio do silêncio parecia assustador. Dirigi-me até a sala, onde havia deixado a minha filha Gabriela Martins Trezzi assistindo um programa qualquer, e ela dormia encolhidinha no sofá com a TV ligada e o controle remoto na mão. Desliguei a TV, passei a mão pelos seus cabelos sedosos e a aninhei no meu colo, como se tivesse força, como antigamente, para carregá-la no colo.
Depois de ajeitá-la na cama, obedecendo a sua mania de dormir com a Ursa Tati, a boneca Yasmin e não sei mais quem, colocar uma garrafa de água no chão ao seu lado, ajoelhei-me e beijei muito a Gabriela. No curto caminho que fizemos juntas da sala, onde ela dormia enquanto eu “tagarelava” ao telefone, até o seu quarto, pedi desculpa pela minha demora na conversa com a minha amiga e, principalmente, por deixar a minha pimpolha tanto tempo sozinha. Afinal, embora eu esteja de licença-saúde, Gabriela não está e havia passado o dia no colégio. Só nos restava a noite para o exercício do afeto.
Com uma culpa que pesava pela minha inconseqüência, antes de encerrar meu expediente como mãe e dona-de-casa apagando a luz da sala, conferindo se as portas estavam bem trancadas e vendo a comida do outro dia, passei pelo quarto de minha mãe, que dormia profundamente com a luz acesa e a TV ligada. Fiquei um tempo olhando aquele rosto bonito ainda, apesar da idade, mas cansado da vida, com rugas de tristeza e fios brancos de cabelos de experiência. Emudeci a TV e acomodei melhor a cabeça de minha mãe nos três travesseiros que ela usa para dormir. Tirei seu óculos e dei-lhe boa noite.
Caminhei feito uma múmia pela casa, juntando copos e outras coisas fora do lugar (tenho mania ou ranço de arrumação), organizando o jornal na cesta, enchendo as garrafas de água. Apaguei todas as luzes e no meu quarto, depois de acertar no relógio a hora do despertar, não consegui desfazer-me da culpa de ficar tempo demasiado ao telefone e esquecer da minha filha/menina/adolescente e da minha mãe/senhora/idosa. Como já dizia a raposa de Antoine de Saint-Exupéry, tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. E uma vez que se cativa alguém, não se pode voltar atrás. É quase um pacto de sangue.
E, no mesmo livro “O Pequeno Príncipe”, tem outro trecho que diz: “Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se parece com outras. Ela sozinha é porém mais importante que todas, pois foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus a redoma. Foi a ela que eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa”. Tanto a minha filha, de 12 anos, e a minha mãe, de mais de 70, foram cativadas por mim e também me cativaram. Como pude ser tão leviana a ponto de esquecê-las, abandonadas em repartimentos da casa, por tanto tempo ? Como pude esquecer que as cativei ?
Não tenho as respostas. E não as encontrei nos dicionários mais atualizados. Apesar de estar perto dos enta (já estou contando para trás), confesso a minha total ignorância e ingenuidade para determinados assuntos. Principalmente os relacionados com o coração. Os sentimentos mais ternos que unem três gerações, três pensamentos, três motivações, três corpos que se encontram e se cruzam e se acarinham habitando a mesma casa há cinco anos. Minha mãe, eu (filha da minha mãe, é claro, e com possibilidade de mais tarde também ser avó) e Gabriela (minha filha, neta de minha mãe e quem sabe, no futuro, mãe de alguém).
A minha responsabilidade com as duas e delas comigo. O amor que nos nutre e nos sustenta. O carinho que nos afaga e nos conforta. O teto que nos abriga e nos acolhe. E a cena encantadora de colocar para dormir a minha filha, ávida de perguntas e interrogações; e a minha mãe, fugindo de respostas e ponto final. Foi um presente antecipado de Dia das Mães, com a certeza de que aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós, deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.
Márcia Fernanda Peçanha Martins (publicado originalmente no site www.coletiva.net em 9 de maio de 2007)
Pois, uma hora depois, ao colocar o fone no lugar, em cima da minha bancada de computador, notei que somente a minha respiração era ouvida pelo apartamento. Luzes deixavam escapar alguma vida de duas peças, mas o silêncio do silêncio parecia assustador. Dirigi-me até a sala, onde havia deixado a minha filha Gabriela Martins Trezzi assistindo um programa qualquer, e ela dormia encolhidinha no sofá com a TV ligada e o controle remoto na mão. Desliguei a TV, passei a mão pelos seus cabelos sedosos e a aninhei no meu colo, como se tivesse força, como antigamente, para carregá-la no colo.
Depois de ajeitá-la na cama, obedecendo a sua mania de dormir com a Ursa Tati, a boneca Yasmin e não sei mais quem, colocar uma garrafa de água no chão ao seu lado, ajoelhei-me e beijei muito a Gabriela. No curto caminho que fizemos juntas da sala, onde ela dormia enquanto eu “tagarelava” ao telefone, até o seu quarto, pedi desculpa pela minha demora na conversa com a minha amiga e, principalmente, por deixar a minha pimpolha tanto tempo sozinha. Afinal, embora eu esteja de licença-saúde, Gabriela não está e havia passado o dia no colégio. Só nos restava a noite para o exercício do afeto.
Com uma culpa que pesava pela minha inconseqüência, antes de encerrar meu expediente como mãe e dona-de-casa apagando a luz da sala, conferindo se as portas estavam bem trancadas e vendo a comida do outro dia, passei pelo quarto de minha mãe, que dormia profundamente com a luz acesa e a TV ligada. Fiquei um tempo olhando aquele rosto bonito ainda, apesar da idade, mas cansado da vida, com rugas de tristeza e fios brancos de cabelos de experiência. Emudeci a TV e acomodei melhor a cabeça de minha mãe nos três travesseiros que ela usa para dormir. Tirei seu óculos e dei-lhe boa noite.
Caminhei feito uma múmia pela casa, juntando copos e outras coisas fora do lugar (tenho mania ou ranço de arrumação), organizando o jornal na cesta, enchendo as garrafas de água. Apaguei todas as luzes e no meu quarto, depois de acertar no relógio a hora do despertar, não consegui desfazer-me da culpa de ficar tempo demasiado ao telefone e esquecer da minha filha/menina/adolescente e da minha mãe/senhora/idosa. Como já dizia a raposa de Antoine de Saint-Exupéry, tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. E uma vez que se cativa alguém, não se pode voltar atrás. É quase um pacto de sangue.
E, no mesmo livro “O Pequeno Príncipe”, tem outro trecho que diz: “Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se parece com outras. Ela sozinha é porém mais importante que todas, pois foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus a redoma. Foi a ela que eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa”. Tanto a minha filha, de 12 anos, e a minha mãe, de mais de 70, foram cativadas por mim e também me cativaram. Como pude ser tão leviana a ponto de esquecê-las, abandonadas em repartimentos da casa, por tanto tempo ? Como pude esquecer que as cativei ?
Não tenho as respostas. E não as encontrei nos dicionários mais atualizados. Apesar de estar perto dos enta (já estou contando para trás), confesso a minha total ignorância e ingenuidade para determinados assuntos. Principalmente os relacionados com o coração. Os sentimentos mais ternos que unem três gerações, três pensamentos, três motivações, três corpos que se encontram e se cruzam e se acarinham habitando a mesma casa há cinco anos. Minha mãe, eu (filha da minha mãe, é claro, e com possibilidade de mais tarde também ser avó) e Gabriela (minha filha, neta de minha mãe e quem sabe, no futuro, mãe de alguém).
A minha responsabilidade com as duas e delas comigo. O amor que nos nutre e nos sustenta. O carinho que nos afaga e nos conforta. O teto que nos abriga e nos acolhe. E a cena encantadora de colocar para dormir a minha filha, ávida de perguntas e interrogações; e a minha mãe, fugindo de respostas e ponto final. Foi um presente antecipado de Dia das Mães, com a certeza de que aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós, deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.
Márcia Fernanda Peçanha Martins (publicado originalmente no site www.coletiva.net em 9 de maio de 2007)
Nenhum comentário:
Postar um comentário