O mundo de Winny e Sofia (*) (**)
Winny tem oito anos, passeia com duas tranças impecavelmente feitas no cabelo escuro de afro-descendente, e deveria saber pouco do mundo fora das fronteiras do bairro Vila Nova, em Porto Alegre, onde mora com a família. Mas, a menina que abre um largo sorriso dispara que soletra bem o seu nome, gosta muito de ler e sabe das coisas. “É assim, mesmo tia: w, i, n, n (dois, viu?) e y, e eu adoro ler histórias”, comenta, rodeada de amigos, todos da mesma faixa etária.
A cidade ensolarada, nenhum crime acontecendo e olhos infantis rondando a Feira do Livro da Escola Municipal de Ensino Fundamental Vila Monte Cristo, na zona sul. Montada pelos alunos do 3º ciclo da escola, a primeira em Porto Alegre a implantar o ensino ciclado na rede pública municipal há 10 anos, na feira, deparo-me com a pequena Winny, em busca de livros com descontos que variam de 10% a 20%.
Alguns colegas de Winny conseguem voltar para a sala de aula com a sacola cheia de livros e, quem sabe, algum trocado para o lanche. Depende da quantia que cada um levou para gastar na feira. Na escada do andar em que acontece a feira, a direção da Monte Cristo decidiu homenagear alguns escritores famosos, como Erico Verissimo, Hans Christian Andersen e Miguel de Cervantes.
Na preocupação da escola em oferecer um estudo com ênfase na literatura é que o mundo de Winny fugiu das fronteiras do seu bairro. Franzina, ela aponta para uma foto na escada e me informa que aquele é Erico Verissimo, um escritor gaúcho famoso. Resolvo interrogar Winny (vou pegar essa garota, penso). Pergunto se sabe o que escreveu o poeta e romancista espanhol Miguel de Cervantes, e sem titubear, responde que é o autor de Dom Quixote de La Mancha.
Surpresa com o conhecimento de Winny começo a conversar com uma bibliotecária e indago quais obras do Andersen que estão à disposição dos alunos na feira? Sofia, mais encorpadinha do que Winny, mas com aparência sapeca e afobada, cita “O Patinho Feio”, “O Soldado de Chumbo”... e imediatamente pede ajuda para a bibliotecária porque já gastou R$ 8,00 e ganhou R$ 15,00 da avó. “Tá faltando para o livro que ainda quero comprar”, reclama Sofia, com as bochechas vermelhas de tanta excitação.
Diferenças à parte lembrei-me da minha felicidade ao comprar, com o meu dinheiro, alguns livros na feira da Praça da Alfândega. Cheguei em casa com a sensação de que o mundo todo cabia naqueles exemplares que eu trouxera na sacola. Lembrei que anos mais tarde, ao entregar o primeiro livro para a minha filha Gabriela, insisti que era importante o hábito da leitura, perfeitamente incorporado em sua rotina, e que quem se apaixona pela arte de ler já tem uma riqueza. E, por fim, recordei que sempre, nos aniversários dos colegas da Gabriela, costumo presentear com livros.
No mundo de Winny e Sofia, que estudam na mesma escola e regulam de faixa etária, e no de Gabriela, freqüentadora de outro colégio, em outro bairro e com mais idade – apesar de todas as diferenças que possam existir –, cada novo conhecimento, palavra e acontecimento é, invariavelmente, respaldado por algum capítulo de uma obra literária. Ou pelo noticiário. Ou pelas revistas. Tudo mais movido pela ânsia de aprender e acumular do que pela curiosidade natural da idade.
Talvez, algum dia, as três se encontrem. E seus mundos se cruzem. Nada é impossível e taxativo. A generalização não leva a lugar nenhum. Um exemplo é que Winny e Sofia estudam em escolas cicladas e Gabriela, não. Pode ser que a paixão pela literatura as aproxime, no futuro. E pode ser que elas até percam, com a velocidade das novas tecnologias, o gosto pela leitura. Mas, com certeza, elas já foram devidamente apresentadas ao mundo maravilhoso dos livros.
(* a coluna foi escrita em 8 de setembro de 2005, ao fazer uma matéria para o Correio do Povo sobre a 11ª Feira do Livro da escola)
(**) Márcia Fernanda Peçanha Martins
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